quarta-feira, 15 de maio de 2013

Memórias Inconsoláveis




Maçã

As águas de Março inundaram a mim, meu corpo, minha casa.
Foi tudo: sala, quarto, cozinha, alma, coração.
Quando já alcançava meu pescoço e tudo boiava e eu tentava salvar objetos e sentimentos, vi duas maçãs e consegui alcançar. As únicas frutas que eu tinha em casa. Coloquei as maçãs no ponto mais alto de mim e salvei.
As maçãs, pelo que aprendi, são frutas resistentes, dessas que os duendes fazem durar meses. Frutas adstringentes. Frutas do pecado, conforme a bíblia dos homens.
Submersa, corpo anestesiado, cuidei das maçãs.
Tudo desmanchava: roupas, compromissos, fotografias, livros, critérios...
Exausta, com frio, num misto de vigília e desmaio, os olhos embotados de lágrimas: recobrava os sentidos.
Foi-se o tempo, mesmo nível de água, até mais! Eu: meio sereia, meio alga e faminta. Não. " Aquele casaco que eu adoro, quero alcançar, não quero, deixa...
O outro casaco! Afundou...”
Pra quê casacos, critérios, se eu tinha as maçãs? Não tinha nem a mim, pra quê o resto?
Sucumbi quando completei mais um ciclo.
Mordi uma maçã e o todo se refez! Voltei inteira e submersa. Olhos marejados de enchente e sorriso nos lábios. Fui me perdendendo e morrendo de felicidade, buscando ar no fundo da água, viva.
A outra maçã, segurei firme pra te dar e me entreguei, até boiar, até...

Caqui

Que garras são essas, cravadas, crispando em mim?
Tua vestimenta é noite e tem garras! Em quem mais faz isso?
Misturou marcas e pele...
A minha ficou marcada, mas não esqueça:
tens um pouco de mim nas unhas-garras.
Células minhas
E quando roubou meu olhar, com íris e tempo?
Com doçura, ou avidez, eu caqui maduro em tua boca.
Amadureci e me descompus
Quando há garras, agarras, há mãos?
Mãos que, nas minhas, peça chave do quebra-cabeça.
Mão cicatriz, na tua, na minha. Anéis sob medida e mãos que, sem padrão, desvelaram meu véu-camisa-branca, passearam por costas, barriga.
Ladrão!
Hoje, o que ficou, perfuma e lembra. Lembra?
Nada de métodos, desfigurando o "como manda o figurino”
Fomos...
Simples assim.

Caju

Dia travoso, caju amarrando boca, língua, transformando a garganta em nó.
E um anoitecer forçado. Horas tortas. Mau jeito com garrafas (as vazias e cheias) e o choro do céu, em seguida e contínuo. Dias de choro.
Você esteve aqui e velei teu sono: respiração entrecortada, muitas vezes profunda, contendo um turbilhão. Dormiu. Muito.
Eu não dormi. Amanheci noite e anoiteci dia, ao seu lado, só observando.
Olhos cerrados, pálpebras pétalas, cílios cortina...
Ontem voamos. Fomos coragem, medo não: porque não existe nada, nem "pra sempre", nem tempo. Somos trapezistas do nosso mundo.
Você partiu hoje, amanhã no caso de ontem, deixou o aroma em tudo meu.
E meu corpo girou, rodou ciranda. A cabeça, pensamento, velocidade da luz. Existe proteção para isso? O segredo era respirar fundo? Mas, como, se meu peito foi cela? Fui detida: “Mãos ao alto! Está presa por desacato a sua alma!”.
Na cela, ouvi minha alma-cárcere:

- Ela divide sentimentos com você!
- Divide, sim... Eu sinto e sei.
- E aposto que, quando unidas, o universo desaparece...
- Exatamente. Atravessamos aquele portal proibido, sabe? Onde não se conta tempo, nem sabem o significado das horas. As pessoas são espectros. E, danem-se!

Romã

Ânima, leio em ti...
Detrás dessa quase melancolia
o brotar das lavas, que rebentam em premência
O olhar vago, busca incessante
curiosidade marota: ora graciosa, ora em histeria.

Em cada pedaço, em cada canto dentro
desdobram- se maravilhas e insurgências.
Fruta da casca arrebol: romã
Partida, derrama a polpa vermelha em gotas muitas, tenras
doce e ácida e doce...

Que o duelo que traz em si, Ânima, dentro, sufoca
Transborda, derrete e recua
Templo corpo.
Que a moral, imposta, é faca no peito e sangra
E onde quer que sangre, e porquê, deixa sangrar até esvair
Pra ver como é,
sentir.

Firma os pés na clareza, se agarra na certeza, quando há
Se alimenta de vida, quando há
Saber- te, Ânima...
O direito e o avesso.

JABUTICABA

Então fomos para sua praia! Sentamos na frente “de casa”, fim de tarde, brisa, cerveja (cabe tudo, porque faz-de-conta)...
Sentada ao seu lado, cadeiras iguais (dessas de praia, que já se compra de dupla). E nessa tarde, nos entregamos às horas, porque elas eram nossas.
Fizemos alguma brincadeira sobre o contraste de nossas cores, após o sol que tomamos de dia, unindo os braços e falando bobagens, palavras de sorrir. E ao soltar os braços, deixamos os dedinhos enroscados um no outro. Um quase descompromisso, ou quase não querer soltar.
E nesse embalo, conversamos de vidas e sonhos. Das que já vivemos e das que estão por vir... Dos sonhos que já sonhamos, os dejavus, e os que queremos sonhar mais ainda.
Reparei em como seus olhos, com a luz do fim da tarde, ficam num tom castanho bem mais claro, tendendo para o mel. A noite: duas jabuticabas.
E quando a noite "jaboticabou", caminhamos até o píer, para ouvir as ondas mansinhas batendo nas pedras e ver o show de estrelas no céu.
Eu sentei, apoiei minhas costas em um dos pilares de madeira e você fez do meu colo seu apoio.
Por alguns minutos, ficamos em silêncio. ( Eu, brincando nos teus cabelos ) Não daqueles silêncios constrangedores, um silêncio bom.
Dois olhares para o mesmo céu: perspectivas diferentes. 
Quebramos o silêncio, juntas, falando sobre o mesmo assunto, em sincronia: a vista do apartamento do Sumaré! E isso nos fez rir bastante, um riso que terminou com uma pergunta minha: 
- Sabe do quê eu tenho medo?
- Do que você tem medo? (posso enxergar e ouvir você falando e repetindo as palavras) 
- Do píer ruir com a gente em cima. E você?
 E você falou de um medo seu, eu falei de outro meu, e assim fomos fazendo um “duelo” de medos.
Resolvemos, juntas, dar um nome para cada medo e escolher uma estrela pra ele.
E até os medos mais difíceis de falar, ficaram diferentes, porque a gente queria logo imaginar um nome bem doido e escolher a estrela!
As estrelas morrem e isso nos confortou. 
Nascem outras, nascem outros medos, e morrem.
 


Cidra

Erro
Suspender, ancorar...
reduzir a marcha de ser e o volume de estar.
Amargou, como uma cidra.
Eu quero o doce, eu quero é vida!



Jambo (Enredo de Sucumbir)

Faz um ano, mais até...
Plantei esse enredo num dia de cinzas.
E da flor que nasceu, adornei os cabelos
Morri.
A morte é contínua, diária, eu sei...
Pra brotar novidade, que a vida é tenra!
Mas, morri diferente: morri sabendo.